UM ESTRANHO ENCONTRO

por Edson Silva*

Como aconteciam todas as tardes, personagens dos mais variados gêneros se encontravam em uma cafeteria que ficava próxima a igreja matriz. De tudo se conversava: dos extraterrestres a répteis que dominariam o mundo. Mas, aquele dia foi especial, muito especial. Antes, gostaria de esclarecer que não costumo ouvir conversas dos outros, somente e tão somente, claro, quando me interessa.
A tarde chegava e com ela a ansiedade em querer saber qual o assunto do dia e quem seriam os personagens daquela tão esperada tarde. Não demorou muito e a primeira persona entra. Um senhor de aparência elegante, terno engomado, gravata combinando com nada, sapatos com as meias e elas com a calça. Enfim, podia dizer que no cardápio da cafeteria, o chamaria de “combinadinho”. Cabelo bem cortado, penteado de lado, sem barba, um perfume que chamava atenção por seu aroma provocante. Depois dos acessórios complementares, receberia o status de “combinadinho defumado”.
Ao entrar, educadamente pergunta por alguém de cor vermelha degrade e com um odor de enxofre. Respondi que não. Até porque se estivesse na cafeteria, teria reconhecido o dito cujo. Penso que você também. Depois de saber que o seu esperado não teria chegado, pediu um café forte, tipo expresso, sem açúcar e foi sentasse. Aquela figura lembrava alguém, mas quem? Qual dos amigos se vestia assim? Ou usa um perfume tão cheiroso? Não lembro, talvez ainda estivesse para acontecer uma amizade do tipo.
Enquanto me perguntava sobre aquela distinta criatura, entra um mendigo pedindo uma ajuda para alimentasse. Sem perda de tempo procurei retirar aquela figura do recinto da cafeteria, afinal de contas ali não era local de se pedir esmola. Para minha surpresa o “combinadinho defumado” aproximou-se e gentilmente pediu licença convidando o mendigo a sua mesa. Solicitou em seguida um prato de comida para o pobre coitado. Bem, afinal de contas o cliente é quem manda e a cafeteria não era uma entidade filantrópica, se aquela gentil figura pagará pelas despesas por que não atender. Prato servido, café posto e ouvidos atentos.
Como disse: não gosto de ouvir conversas dos outros, somente quando me interessa. E aquela conversa muito me interessou. Despertou minha curiosidade quando escuto o “Combinadinho Defumado”, que vou chamá-lo de agora em diante de “CD”, perguntar ao mendigo como ele estava passando. Respondi a mim mesmo em silêncio: “passando fome e outras necessidades”, era óbvio, que pergunta sem sentido. Mas, para minha surpresa a resposta fora outra; o ouço dizer que estava chegando à conclusão que a criatura humana foi um erro. Um “erro”? De quem? De Deus? De Darwin? Quem ou o que teria errado? Fingindo limpar o balcão, me aproximei dos dois sem que percebessem minha presença. E foi aí que meus pés ficaram colados no chão e as orelhas voltadas para os dois. Continuou o mendigo a falar: desde o momento que o Homem foi criado, meus problemas apareceram. Veja por exemplo, aquele casal do paraíso que tinha de tudo. E o que fizeram? Foram expulsos por causa de uma fruta. Uma fruta desgraçou suas vidas. Neste instante “CD” gesticula e diz que não concorda e diz que o casal no fundo descobre que podem pensar por si mesmo, serem livres e ter outros prazeres.
O mendigo em defesa própria alega que a posição onde eles estavam, podiam fazer tudo que quisessem, eram livres, bastava apenas obedecer, somente isso, obedecer! No entanto, “CD” toma a fala e lembra que com os anjos não foi diferente. A teoria da obediência não funcionou e que houve uma rebelião; inclusive um deles foi expulso e criou seu próprio mundo; até onde se sabe, parece que vai bem melhor que o do seu concorrente. Nos últimos anos seu mundo tem crescido bastante, ao contrário do outro que estagnou. E detalha: lá, construiu desejos que dão prazeres. Por exemplo: o poder, a riqueza, corpo perfeito, modernizou com o uso do like e das redes sociais; incentivou o exagero das coisas, o ter demasiado, transformou a lei da reprodução em um verdadeiro tobogã de satisfação alucinada. Por fim, alfineta “CD”, que tudo é uma questão administrativa.
É difícil aceitar, mas parece que o caridoso tem razão. Pensou o mendigo enquanto comia e prestava atenção na fala do anfitrião. Em outras palavras, tratava-se de uma má administração de pessoas, desejos e realizações. Afinal de contas, possuir todo o poder e dar a criatura o livre arbítrio, mesmo que acompanhada de uma lei do retorno, não foi lá uma boa ideia. Também concordei com o mendigo, faltou experiência e conhecimento. Será? Sem esperar que a conversa esfriasse, o mendigo perguntou: E você, perguntou para “CD”, como tem passado? Confesso que fiquei confuso, mas não quis responder pelo “CD”. Ele riu e disse está preocupado em perder seu status de mandatário.  Pensei com meus botões: como corre o risco de perder sua posição e ri da situação?! Deve ser uma alma nobre.
E “CD” explana sua preocupação. Diz ele que antes de chegar aqui neste mundo, achava que podia mais do que me era mandado fazer. Você sabe, briguei com todos. Inclusive com você. Quando aqui cheguei, nos primeiros dias, foi maravilhoso. Adorado como um deus, construí e destruí ao meu bel prazer. A recompensa foi muitos adeptos pela facilidade da porta larga. Confesso que quando meu irmão aqui esteve, fiquei com receio que conseguisse seu objetivo; mas logo vi que o único esforço que deveria fazer era me fingir de morte, pois os meus seguidores eram falsos suficientes para enganar a eles mesmos e aos outros. Foi fácil, bastou que impregnasse na cabeça dos tolos o “castigo” torturador e um prêmio prazeroso. E pronto! Consegui mais do que precisava. Com a ciência, a política e a religião, pude exercer uma grande aliança com a cegueira, a corrupção e as divindades. Cegos conduzindo cegos. Bons tempos aqueles, conclui “CD”.
A esta altura minha confusão era maior. Pensei: Eles se conhecem? Ou a cafeína do expresso subiu a cabeça de “CD”?
E as religiões, perguntou o mendigo, acha que é tempo de interferir nelas? De modernizá-la? Melhor não, respondeu “CD”. E continua, ela mesma se automodernizará. Este século pertence ao conhecimento e se você mexer nela, meu risco de perder o cargo para suas criaturas aumenta, assim, em nome da nossa amizade entre pai e filho, deixe como está que pior não pode ficar. Contudo devo lembrá-lo que todos te amam, mas, sou eu a quem eles adoram! Finaliza “CD”.
Neste momento descobri que não só meus pés estavam colados ao chão, como uma gélida sensação percorreu todo meu corpo e minha alma. E antes que pedissem a conta, exclamei: hoje é por conta da casa! Surpresos pela inesperada reação, agradeceram e saíram. Afinal, um bom café com uma boa conversa quem resiste?!

*Pesquisador da Ciência da Religião e Palestrante

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